Na clínica racializada, reconhecemos que o álcool tem sido, muitas vezes, um anestésico para a dor que não encontrou escuta, um companheiro solitário em meio à ausência de vínculos significativos e um legado herdado de repressão para sobreviver. O que se apresenta como “fuga”, “vício” ou “falta de controle” é, muitas vezes, uma resposta complexa a um contexto sistemático de abandono, perdas e exclusão dos espaços de poder, afeto e cuidado.
A masculinidade negra é forjada em um campo de batalha simbólico e material. Como afirma Frantz Fanon, homens negros vivem o pênis sem o falo, pois são hipersexualizados e reduzidos à virilidade corporal, sem acesso pleno às estruturas de poder que caracterizam a masculinidade hegemônica branca e burguesa. São ensinados desde cedo que “homem não chora”, que “ser forte é sobreviver calado” e que fraqueza emocional compromete sua masculinidade. Uma masculinidade conflituosa e marcada por cobrar força onde há exaustão, silêncio onde há trauma, e castigo onde há erro.
Nesse cenário, o álcool assume um papel ambíguo, de escudo e prisão. Muitos homens negros aprenderam, com os seus mais velhos e com a cidade, que a bebida anestesia a dor, fortalecendo as barreiras de silêncio. Esse aprendizado, atravessado por gerações, carrega raízes profundas dos tempos da escravização, quando o álcool era parte da dieta imposta aos cativos como estratégia de controle físico e emocional. No pós-abolição, a mesma substância permaneceu como consolo solitário frente ao sofrimento urbano, ao desemprego, à desagregação familiar e à ausência de pertencimento comunitário.
A solidão masculina negra não é simples resultado da fragilidade dos laços afetivos, mas da interdição desses laços pela violência racial urbana. Trata-se de um tipo de solidão produzida pela polícia, mídia, mercado de trabalho e até mesmo pelas instituições de cuidado. Jovens negros são vistos como ameaça antes de serem vistos como sujeitos, potencializando um cotidiano de desamparo e insensibilidade. São criados para reprimir a dor e também punidos por expressá-la, através da criminalização, abandono ou da ridicularização pública. Esse ciclo perverso transforma a repressão emocional em padrão de sobrevivência e o álcool em resposta psíquica legítima frente à angústia social silenciada.
Uma leitura interseccional se faz urgente para compreender como raça, gênero e classe se articulam na experiência desses homens. Ao contrário da fantasia liberal de que todo homem é beneficiado pelo patriarcado, a masculinidade negra é marcada pela insuficiência, pois não acessa o falo simbólico e aprendeu a usar a violência como recurso para acessar o poder.
Nesse contexto, a clínica racializada não pode se furtar de seu compromisso ético-político. Não nos basta oferecer tratamento individualizado para o “uso de substâncias” como se fosse apenas uma questão bioquímica ou de vontade pessoal. Precisamos escutar o grito sufocado nas entrelinhas do uso, compreender o álcool como linguagem de sobrevivência, e propor intervenções que passem pela reconstrução do pertencimento, da legitimidade afetiva e da possibilidade de existir para além da performance de dureza.
Promover saúde no território das masculinidades negras exige romper com os pactos do silêncio. Para isso, é necessário reconhecer que o sofrimento psíquico tem origem sócio-política e que o cuidado, nesse caso, é mais do que um serviço — é um gesto de restituição de humanidade. Por isso, insistimos na interseccionalidade não apenas como ferramenta analítica, mas como prática de escuta, de resistência e de afeto. A psicoterapia, individual ou em grupo, deve ser um convite a recusar o silêncio como única forma de se manter vivo. Um chamado para que os homens negros possam compartilhar suas dores, nomear suas angústias e se reconhecerem dignos de cuidado.
Práticas que interrompem o ciclo do isolamento, capazes de rasurar o pacto da masculinidade que transforma sofrimento em vergonha. Questionar este modelo hegemônico é também criar espaço para a reinvenção de afetos possíveis. Para que chorar não seja sinônimo de fracasso, pois cuidado é direito.
Sobre as autoras
Bárbara Borges (29) e Francinai Gomes (26) são pesquisadoras, escritoras e coordenadoras do projeto Pra Preto Psi. Ambas são naturais do interior baiano, tendo se conhecido durante a graduação em psicologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atuam no campo da psicologia social e promoção de saúde mental da população negra, se dedicando a temática da clínica racializada. Publicaram juntas o livro Saber de mim: autoconhecimento em escrevivências negras (2023) e compartilham no instagram Pra Preto Ler escrevivências que unem psicologia, saúde mental e comunidade negra brasileira.
