Na clínica racializada quem faz recorte racial é a branquitude

Blog Pra Preto Psi Clínica racializada e branquitude
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Nas ciências humanas, consideramos “recorte racial” um movimento de identificação e contextualização da pertença racial e suas repercussões sociais, necessário para compreensão ampliada de uma determinada situação. Dentro da psicologia, utilizamos este mesmo marcador para informar um posicionamento ético e político de considerar a pertença racial como elemento estruturante das subjetividades. Neste sentido, fazer o “recorte racial” é afirmar o contexto como fundamental para compreender o sujeito em sua integralidade, considerando as dimensões biopsicossociais em diálogo com a perspectiva da clínica ampliada. Quando falamos de branquitude, porém, essa discussão parece perder sua força, como se pessoas brancas não fossem também socializadas a partir da sua pertença racial.

Relembremos, então, Sueli Carneiro que aponta a racialidade como dispositivo de biopoder, a partir do qual a branquitude se afirma universal utilizando-se do paradigma do Outro. Nesta dialética de negação, o Outro ocupa o imaginário daquilo que a branquitude não deseja ser, transferido ao diferente como justificativa para sua inferiorização e colonização. Afirmando-se como sujeito essencialmente neutro, bom e racional, pessoas brancas descontextualizam suas crenças e comportamentos ao longos dos séculos. E já que as relações raciais também acontecem nos encontros clínicos, a clínica racializada também precisa pensar a branquitude.

Na experiência de pessoas negras brasileiras, a raça é um elemento sempre presente, mesmo que ausente de nomeação. Como aponta Carla Akotirene, no Brasil raça informa classe e classe informa raça, evidenciando a intersecção entre ser pobre e negro. Se a clínica psicoterapêutica tiver como público predominante de atendimento pessoas negras em condições de vulnerabilidade, a exemplo da experiência no Pra Preto Psi, será possível visualizar as avenidas identitárias que compõem as estruturas de produção do sofrimento. Vivências de discriminação (68%), Experiências de abandono e/ou violência familiar (61%) e Sentimento de solidão persistente (60%) são queixas frequentes e indicadores de vulnerabilidade socioemocionais*. Concluímos, em acordo com Neusa Santos Souza, que origem a angústia é social, mas sua estrutura é singular. Ou seja, a clínica com pessoas negras, na maioria das vezes, já se apresenta em contexto e, sem atenção a ele, frequentemente o profissional clínico pode interagir de forma negligente e insensível.

Quando falamos de clínica psicoterapêutica com pessoas brancas, porém, é importante considerar que o sofrimento que chega nem sempre tem origem nas questões sociais e condições de desigualdade ou exclusão. Esta, no entanto, não se configura razão para deixar de considerar sua pertença racial como estruturante dos processos de subjetivação. A branquitude possui seus modos de viver, sentir e se relacionar com o mundo e, se aceitarmos o convite à neutralidade da temática racial na interação clínica com pessoas brancas, certamente reproduziremos os pactos sociais em torno da convivência harmoniosa entre as raças e a meritocracia como explicação para desigualdades cotidianas. Por isso, na clínica racializada com pessoas brancas torna-se necessário fazer o “recorte racial”, convidando o sujeito a pensar sobre raça e contexto em suas narrativas.

Pessoas brancas brasileiras possuem dificuldade em falar abertamente sobre raça, identificação e pactos de proteção, mas frequentemente os conteúdos das suas falas dialoguem com valores supostamente universais, neutros e racionais. A branquitude no Brasil vive suas crenças, afetos e escolhas cotidianas sem abordar o contexto no qual estão inseridas, e isso só acontece porque se impõem como ordem. Por isso, é fundamental abordar a diversidade e afirmar a diferença na escuta clínica com a branquitude, convidando-a a romper com a suposta neutralidade e assumir um posicionamento que respeita a diversidade. A psicoeducação, neste contexto, se orienta para multiculturalidade e o respeito às diferenças nas experiências cotidianas narradas no setting terapêutico.

A branquitude carece de contexto, pois historicamente utiliza a neutralidade como recurso para fugir da ética. Neste sentido, ter uma abordagem decolonial na psicologia é o que permite convidar o paciente a novos circuitos cognitivos, onde o perdão cristão dá lugar à responsabilização. Cultivar posicionamentos críticos dentro de uma ética antirracista e práticas contextualizadas garantem novas formas de interpretação da vida cotidiana, abrindo espaço para o que costumamos chamar de “recorte racial”, agora aplicado à branquitude e suas formas de subjetivação.

Este é um movimento de racialização, não uma mera decisão clínica! É necessário estudar a branquitude enquanto categoria sociológica, seus pactos de proteção e seus processos de subjetivação. Para isso, combater o epistemicídio e se debruçar na leitura dos estudos de Cida Bento, Lourenço Cardoso, Sueli Carneiro e Célia Marinho são fundamentais, tanto quanto conhecer e praticar a contra colonização proposta pelos mestres Nego Bispo e Ailton Krenak.

*Com base nos dados coletados dos formulários de triagem para atendimento psicoterapêutico através da plataforma Pra Preto Psi em 2025 e anos anteriores.

Referências

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (Org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2. ed., 2003. p. 25-58.

BISPO, Nêgo. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora / Piseagrama, 2023.

CARDOSO, Lourenço. O branco “invisível”: um estudo sobre a emergência da branquitude nas pesquisas sobre as relações raciais no Brasil (período 1957-2007). Dissertação (Mestrado) — Universidade de Coimbra, Coimbra, 2008.

CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MARINHO, Célia. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987.

SALLES JÚNIOR, Ronaldo L. Democracia racial: o não-dito racista. Tempo Social, v. 18, n. 2, p. 229-258, 2006.

SANTOS SOUZA, Neusa. Entrevista ao Programa Espelho com Lázaro Ramos, 2003. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eugWGvhG48o.

Sobre as autoras

Bárbara Borges (29) e Francinai Gomes (26) são pesquisadoras, escritoras e coordenadoras do projeto Pra Preto Psi. Ambas são naturais do interior baiano, tendo se conhecido durante a graduação em psicologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atuam no campo da psicologia social e promoção de saúde mental da população negra, se dedicando a temática da clínica racializada. Publicaram juntas o livro Saber de mim: autoconhecimento em escrevivências negras (2023) e compartilham no instagram Pra Preto Ler escrevivências que unem psicologia, saúde mental e comunidade negra brasileira.

Francinai Gomes e Bárbara Borges, escritoras do livro "Saber de mim" e fundadoras do Pra Preto Psi
Francinai Gomes e Bárbara Borges, escritoras do livro “Saber de mim” e fundadoras do Pra Preto Psi