Há histórias que não pedem licença para existir — elas irrompem na superfície da pele antes que qualquer nome seja pronunciado. Para o homem negro no Brasil, o corpo nunca é apenas corpo: é prólogo, aviso, frontispício. Ele chega ao mundo com uma legenda pré-instalada, gravada no território epidérmico como um édito silencioso: “excesso”, “força”, “perigo”. A pele, em sua materialidade incontornável, atua como uma espécie de escritura pública que antecede qualquer tentativa de autobiografia. Antes que o sorriso se faça gesto, antes que o pensamento se faça palavra, o corpo já foi interpretado, classificado, articulado como símbolo. Ele carrega um passado que se infiltra no presente, uma memória que se adianta à vida. É uma narrativa que antecede o sujeito — e, às vezes, o sufoca.Este ensaio nasce exatamente dessa fricção: o ponto em que a biografia tenta emergir, mas encontra a muralha de significados coloniais que moldam — e limitam — a masculinidade negra. Porém, essa reflexão só encontra sua plena espessura quando iluminada pelo pensamento de bell hooks, especialmente em A Vontade de Mudar, obra que desmonta, com precisão cirúrgica e com ternura radical, a máquina afetiva que produz homens emocionalmente mutilados. hooks insiste que os homens não são os arquitetos originais da opressão patriarcal — eles são, antes, seus administradores coagidos. E, quando esses homens são negros, a engrenagem opressora se torna dupla: patriarcado por dentro, racismo por fora. O resultado é uma subjetividade continuamente sitiada.
É por isso que este texto conjura o rap — nas vozes de Djonga, Baco Exu do Blues e Emicida — como uma das mais complexas arenas contemporâneas de disputa afetiva. Suas obras funcionam como ensaios sonoros sobre a masculinidade, textos de resistência que contestam as ficções coloniais e as couraças patriarcais. São, no fundo, manifestações estéticas daquilo que bell hooks chama de masculinidade feminista: uma forma de ser homem que recusa o mandato da insensibilidade e busca a liberdade emocional como horizonte político.
FANON NA ESQUINA: O CORPO COMO TRADUÇÃO FORÇADA
Existe uma experiência comum entre homens negros no Ocidente — e Fanon a nomeou com um desconforto tão lúcido que parece escrito diretamente no concreto brasileiro. A experiência de ser transformado em corpo antes de ser reconhecido como pessoa. De ser objetificado no instante em que se torna visível. De ser lido pelos outros como se fosse um texto sem autoria, disponível para interpretações hostis.
No Brasil, esse fenômeno não é abstrato: está nas ruas estreitas, nos olhares que atravessam, na tensão súbita ao entrar num elevador, na mudança de comportamento dos outros quando a presença negra rompe o cotidiano. O homem negro chega e o mundo já decidiu por ele. É como se uma semântica alheia fosse aplicada à sua carne — uma semântica construída a partir de séculos de colonialidade.
hooks nos oferece uma chave crucial para entender essa experiência: o patriarcado exige que homens neguem suas emoções como forma de provar sua suposta autoridade. Para o homem negro, esse mandamento se combina à expectativa racista de agressividade, gerando uma subjetividade polifonicamente vigiada: deve parecer forte, mas não demais; deve parecer confiante, mas nunca ousado; deve estar presente, mas sempre como possibilidade de ameaça.
É nesse campo de tensões que emerge a voz de Djonga. Em O Mundo é Nosso, quando ele afirma que “cada bala de fuzil é uma lágrima de Oxalá”, ele articula com o rap o que Fanon articulou com a teoria: que o sofrimento do povo negro não é um dado pontual, mas uma ferida espiritual. Djonga cria uma ponte entre o corpo racializado e o sagrado, revelando que a violência do Estado é também violência contra toda uma cosmologia. Ele rompe, assim, com a lógica patriarcal que tenta reduzir a dor negra à brutalidade física — e a reinscreve como dor histórica, dor ancestral, dor coletiva.
LÉLIA GONZALEZ NA PELE, BELL HOOKS NO VERBO: O SEQUESTRO DO CORPO E A DISPUTA PELO DESEJO
Apontamos um sequestro que nunca aparece explicito nos livros de história, mas que molda profundamente a masculinidade negra: o sequestro do sentido do corpo. Lélia Gonzalez identifica essa operação com precisão: a colonização não se satisfez em dominar territórios — ela colonizou também a imaginação, criando um aparato simbólico que transformou o corpo negro em fantasia branca. Hiperssexualizado, desumanizado, maquinaria de desejo alheio, o homem negro foi confinado a uma performance compulsória que o silencia em sua interioridade.
É nesse território que Baco Exu do Blues opera sua ofensiva estética. Ele não apenas denuncia o fetiche colonial; ele o hackeia. bell hooks ensina que a única emoção que o patriarcado permite aos homens é a raiva — e Baco a utiliza como arma sem perder de vista seu caráter instrumental. Em Imortais e Fatais, ao ironizar “Não era isso que você queria / Um preto de pau grande pra usar de estereótipo/Flow Kid Bengala/Fodi toda essa gentinha do seu tipo”. Ele transforma a própria fantasia colonial em campo minado. Ele usa o estereótipo como espelho invertido: devolve-o ao opressor como crítica, não como adesão. Ele mostra que a imagem criada para reduzi-lo pode ser usada para expor a violência que a originou.
Mas é em Fetiche que Baco realiza o movimento ainda mais radical: ele reconstrói o desejo a partir de si mesmo. A obra abandona todo resquício de reação e inaugura um campo afirmativo: a sexualidade negra é tratada como linguagem complexa, como território de autonomia, como poesia encarnada. A carne deixada à disposição do olhar branco converte-se em carne que deseja, que escolhe, que nomeia. É a realização musical do que hooks chama de reaprendizagem do amor-próprio — uma reinvenção da subjetividade através da reconquista do próprio corpo.
A ARMADURA E SUA FISSURA: QUANDO A PROTEÇÃO VIRA PRISÃO
Há um ponto em que a masculinidade negra, submetida simultaneamente ao patriarcado e ao racismo, deixa de operar como estratégia e passa a operar como cárcere. Chamamos hooks de volta para iluminar esse fenômeno com precisão dolorosa: o patriarcado exige dos homens a renúncia sistemática ao próprio mundo emocional, e essa renúncia produz uma morte lenta — a “morte emocional”, como ela a chama. Para o homem negro, essa morte não é apenas consequência da socialização masculina; é também um expediente de sobrevivência, uma técnica adquirida para enfrentar uma sociedade que interpreta qualquer vulnerabilidade como fraqueza e qualquer expressão emocional como ameaça. Ele aprende, portanto, a ser duro não porque deseja sê-lo, mas porque aprendeu que maciez o expõe ao risco, que suavidade o torna alvo, que ternura o deixa desarmado diante de um país que opera com lógica de extermínio.
A armadura, nesse contexto, não é metáfora apenas: ela é gesto corporal, é postura, é olhar que se endurece, é silêncio que se acumula. Ela é a máscara que o protege da violência externa, mas que, paradoxalmente, o isola da própria vida afetiva. O homem negro é convocado a interpretar um papel que não escreveu — o papel do inabalável, do resiliente absoluto, do corpo que aguenta. E, quanto mais ele performa essa dureza, mais distante fica da possibilidade de reconhecer suas próprias fraquezas, seus medos, suas demandas por amor. É nesse ponto que a proteção vira prisão: quando aquilo que serve para sobreviver impede de viver. É o colapso lento de um edifício construído para resistir e não para respirar.
É exatamente essa fissura — esse momento em que a fortaleza mostra rachaduras — que Baco Exu do Blues encarna em En Tu Mira. Quando ele diz “Homem não chora / Foda-se, eu tô chorando! (…) Isso é um pedido de socorro/ Você está aplaudindo/ Eu tô me matando, porra!”, não está apenas confessando uma dor íntima; está cometendo um ato de desobediência epistemológica. Ele viola o mandato patriarcal não como catarse, mas como denúncia. É como se dissesse: “se esta masculinidade exige que eu silencie meus próprios sentimentos para existir, então não quero existir nesses termos.” Sua voz, rasgada e insurgente, escancara o quanto a armadura pesa e o quanto ela deforma. O choro, aqui, não é fraqueza — é revelação. É a prova de que há vida por baixo da couraça, e que essa vida, para seguir existindo, precisa encontrar outras formas de respirar.
O “NÓIS” COMO CURA: A COMUNIDADE COMO PRÁTICA DO AMOR
bell hooks afirma que a cultura patriarcal ensina homens a confundir isolamento com independência e silêncio com força. Para o homem negro, essa lição é ainda mais cruel, pois se mistura a uma estrutura social que produz sua solidão como política pública. A solidão negra masculina no Brasil não é acidente: é engenho, é arquitetura. Ao isolá-lo, a sociedade impede que ele construa laços afetivos sólidos, dificulta que ele reconheça sua dor como coletiva e impede que se veja como parte de um projeto histórico maior do que seu sofrimento individual.
Por isso, há algo profundamente revolucionário quando Emicida proclama, como se reafirmasse uma lei ancestral: “Tudo que nóis tem é nóis.” Essa frase, repetida quase como mantra, não é um chamado sentimental. É a formulação de uma alternativa ao pacto patriarcal. Ela recusa o isolamento como destino e reinstala a interdependência como fundamento ético. É como se Emicida dissesse que a sobrevivência negra só é possível porque existe uma rede invisível de cuidado mútuo — homens que se amparam, famílias que se acolhem, comunidades que funcionam como travas contra a barbárie.
Essa rede não é abstrata: ela se materializa no barbeiro que pergunta “e aí, tá firme?”, no amigo que segura o outro na beira do colapso, no vizinho que oferece abrigo emocional sem pedir explicações. É nesses gestos cotidianos, aparentemente simples, que se constrói o que hooks chamaria de prática do amor: A sustentação ativa da vida do outro. A comunidade funciona como uma contenção para aquilo que o patriarcado destrói. Ela devolve ao homem negro a capacidade de se enxergar não como ilha, mas como continente. E, nesse processo, a masculinidade ganha um novo centro gravitacional: ela deixa de ser definida pela dureza e passa a ser organizada pelo cuidado.
O AFETO COMO DESOBEDIÊNCIA: A RECONSTRUÇÃO EMOCIONAL COMO INSURGÊNCIA
Se o patriarcado exige dos homens a renúncia ao sentimento, então o afeto é, por definição, uma forma de insurgência. Para bell hooks, amar — amar verdadeiramente, amar com consciência, amar com abertura — é um ato político porque desativa a lógica de dominação que estrutura a masculinidade hegemônica. E quando esse amor é praticado por homens negros, ele opera em dupla contramão: desafia o patriarcado e desafia o racismo. Amar, para o homem negro, é um gesto de sobrevivência e de reconfiguração identitária.
É o que Baco realiza em “Samba in Paris”, quando afirma “vou estancar seu sangue, beijar as cicatrizes”. Sua declaração não é apenas romântica no sentido tradicional, é possível se aproximar de uma camada visceral, corporal, concreta. O amor aqui é cuidado ativo, é acompanhamento da dor, é tocar a ferida alheia sem medo de manchar as próprias mãos. E é impossível não ouvir, por trás desse gesto, a voz de Bell hooks dizendo que amar é trabalhar pela liberdade emocional do outro. Baco oferece isso — e, ao fazê-lo, reescreve o código afetivo da masculinidade negra.
Emicida, por sua vez, traduz essa ética para o chão da vida comum. Em Pequenas Alegrias da Vida Adulta, ele descoloniza o imaginário do cuidado ao localizá-lo não em grandes pactos heroicos, mas nos rituais domésticos que sustentam a existência: a benção matinal, o beijo antes do corre, o riso que brota no momento improvável. Ele mostra que o amor é hábito, não espetáculo; é frequência, não explosão; é reparação lenta, não evento extraordinário.
Djonga, finalmente, devolve o afeto ao seu ventre original: a ancestralidade. Em Bença, ele faz do cuidado uma herança espiritual, lembrando ao homem negro que não existe masculinidade saudável sem reconhecimento de filiação. Para hooks, o homem que se reconecta com suas raízes afetivas começa a abandonar o ideal de autossuficiência — e, no Brasil, esse retorno às origens é mais do que gesto simbólico: é restituir dignidade a todas as mulheres negras que sustentaram o mundo com seus corpos e sua força. Djonga mostra que o afeto não começa no romance: ele começa no colo. E esse retorno ao colo é, em si, uma forma de revolução.
A VONTADE DE SENTIR: QUANDO A PELE ESCREVE DE VOLTA
Descolonizar a masculinidade negra — especialmente quando vista através de bell hooks — não significa produzir um novo modelo idealizado de homem. Significa, antes, desmontar os dispositivos que impedem o homem negro de existir em sua amplitude emocional. É a coragem de abandonar a armadura não porque o mundo deixou de ser violento, mas porque a vida se torna insuportável quando o coração permanece aprisionado.
Quando Djonga espiritualiza a dor, quando Baco erotiza a autonomia, quando Emicida ritualiza o cuidado; quando Fanon nomeia o olhar que desumaniza, quando Lélia denuncia o sequestro simbólico, quando hooks convoca os homens à liberdade afetiva — Algo tectônico acontece: a pele, antes lida como fronteira, torna-se cartografia. Não superfície inerte, mas mapa de sentidos insurgentes. A carne negra recusa ser símbolo e volta a ser sujeito. Ela não apenas existe: ela traça rotas. Ela desenha linguagem, mapeia existências, projeta futuros.
Se a armadura patriarcal e racista é, em última instância, uma fábrica de incongruência — forçando o homem negro a negar sua experiência organísmica (medo, dor, necessidade de cuidado) para se adequar a um ideal opressivo de ‘dureza’ —, então a prática do afeto proposta por esses artistas opera como um poderoso código de reintegração. A obra de Djonga, Baco e Emicida funciona como um campo relacional empático, no qual a vulnerabilidade cantada, a dor nomeada e a comunidade celebrada validam experiências internas há muito silenciadas. Ao fazer isso, eles não aplicam um tratamento externo, mas criam as condições para que a tendência atualizante do sujeito se restabeleça. O ‘nóis‘ de Emicida, o choro desobediente de Baco e a espiritualidade afetiva de Djonga são, assim, ferramentas de um processo de tornar-se pessoa mais inteira e congruente, reinscrevendo na pele não um édito alheio, mas a autoridade de uma própria narrativa interna, sensível e complexa.
Eis onde a reinvenção da masculinidade negra encontra seu solo fértil: no instante em que esse homem escolhe sentir, mesmo sabendo que o mundo tentará puni-lo por isso. Quando ele compreende que a vulnerabilidade não é ameaça à existência, mas condição para uma vida mais plena. Quando ele percebe que o amor — como insiste hooks — é sempre uma prática de libertação. Talvez seja esse o gesto final que este ensaio deseja iluminar: que o florescimento da masculinidade negra não está na conquista grandiosa, mas na decisão íntima e cotidiana de permitir que a carne volte a pulsar. A potência está no afeto que insistimos em negar, mas que sempre retorna. No sentir que nos ensinaram a esconder, mas que nunca morreu. No amor que o patriarcado tentou sequestrar, mas que continua — teimoso, profundo, insurgente — a nos chamar de volta para casa, de volta ao eixo de nosso próprio ser.
REFERÊNCIAS
- BACO EXU DO BLUES. Bluesman. São Paulo: 999, 2018. Faixa: Imortais e fatais.
- BACO EXU DO BLUES. QVVJFA?. Rio de Janeiro: Universal Music, 2020. Faixa: En Tu Mira.
- BACO EXU DO BLUES. QVVJFA?. Rio de Janeiro: Universal Music, 2020. Faixa: Samba in Paris (part. Gloria Groove).
- DJONGA. O menino que queria ser Deus. Belo Horizonte: DV Tribo, 2018. Faixa: Bença.
- DJONGA. O menino que queria ser Deus. Belo Horizonte: DV Tribo, 2018. Faixa: O mundo é nosso.
- EMICIDA. O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui. São Paulo: Laboratório Fantasma, 2013. Faixa: Levanta e anda.
- EMICIDA. AmarElo. São Paulo: Laboratório Fantasma, 2019. Faixa: Pequenas alegrias da vida adulta.
- FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. 3. ed. Salvador: EDUFBA, 2008.
- GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
- HOOKS, bell. A vontade de mudar: homens, masculinidade e amor. 1. ed. São Paulo: Elefante, 2020.
- HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. 1. ed. São Paulo: Elefante, 2020.
- HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 1. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2022.
- HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
- LOPES DOS SANTOS, Ynaê. bell hooks e as miudezas que importam. Geledés – Instituto da Mulher Negra, São Paulo, 16 dez. 2021. Disponível em: https://www.geledes.org.br/bell-hooks-e-as-miudezas-que-importam/ . Acesso em: 15 nov. 2025, 10:45.
- NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2016.
- SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
- RODRIGUES, Walter Hugo de Souza. Estereótipos e representações dos corpos dos homens negros e os efeitos em suas construções identitárias. 2023. 159 f. Dissertação (Mestrado Interdisciplinar em Educação, Linguagem e Tecnologias) – Universidade Estadual de Goiás, Anápolis, 2023.
Sobre o autor:
Rodrigo Marinho é psicólogo clínico e historiador. Atua com foco na Abordagem Centrada na Pessoa, integrada a perspectivas interseccionais e decoloniais, investigando as relações entre espiritualidade, saúde mental, cultura e história, bem como os impactos das transformações tecnológicas e econômicas na subjetividade contemporânea. Integra, desde 2023, o Projeto Pra Preto Psi, iniciativa voltada a formação, pesquisa e ao atendimento psicológico de pessoas negras em rede e em perspectiva comunitária. É membro da Comissão de Relações Étnico-Raciais do Conselho Regional de Psicologia de Pernambuco (CRP-02)