Entre o divã e a rua: a psicanálise com sotaque brasileiro 

Blog Pra Preto Psi Entre o divã e a rua - Luciana Bastos
Blog Pra Preto Psi Entre o divã e a rua - Luciana Bastos

Uma escuta construída unindo teoria e território porque o inconsciente também tem memória e cor.

Durante a pandemia, enquanto o mundo tentava entender o que estava acontecendo e muitos de nós, psicólogos, precisávamos entender o que significava continuar oferecendo um espaço de fala e escuta em meio a tanto medo, solidão e desigualdade, eu também precisei me perguntar. Foi nessa época que fiz um curso sobre psicanálise no contexto brasileiro na USP. E essa pergunta continua me acompanhando: Como fazer psicanálise no Brasil? 

A psicanálise nasceu em outro continente, em outra língua e para pessoas totalmente diferentes da nossa realidade, além de majoritariamente brancas. O Brasil é um território cheio de contrastes, feridas históricas, desigualdades e pluralidade. Diante deste novo cenário, reproduzir certas cenas não é, ou não deveria, ser uma opção. Mas nem todos estão prontos para romper com o “clássico” diante da necessidade de adaptá-lo para outro contexto. 

Fazer psicanálise no Brasil é se deparar todos os dias com histórias formadas por diversas marcas como a desigualdade, o racismo, a ausência do Estado, entre outras. O sofrimento psíquico não nasce no vazio, do nada, ele é carregado por diversos atravessamentos. Às vezes, a dor que chega à clínica vem disfarçada de ansiedade, culpa e/ou cansaço extremo. Mas, por trás disso, há o peso de histórias familiares marcadas pela sobrevivência, pela não permissão para sentir, pelo ímpeto de ser duas vezes melhor e pelo medo de não “dar conta”. 

Ao longo dos anos, tenho percebido que o consultório é um espaço onde o individual e o coletivo se encontram. Afinal, cada paciente chega com suas singularidades, mas nunca vem sozinho. A psicanálise feita aqui precisa ser situada. Precisa olhar para diversos aspectos como o território, cor da pele, condições sociais e, inclusive, para as marcas deixadas por nossa história coletiva. Não é sobre reduzir a escuta em um discurso político, mas de reconhecer que o sofrimento humano também nasce das relações de poder, dos silêncios impostos, das exclusões que atravessam gerações e de outros inúmeros atravessamentos. 

A escuta precisa ir muito além das palavras. Precisa alcançar a história, a cultura, o corpo, a cidade e as particularidades que cada um carrega dentro de si. Escutar o inconsciente no Brasil é escutar o que se diz e o que foi silenciado, tanto na vida do paciente quanto na história coletiva que nos atravessa. Por isso, penso que fazer psicanálise no Brasil, onde o inconsciente fala português, é reconhecer que ela precisa se transformar com a gente. Ela se tropicaliza, se mistura e se abre a novos modos de existir. E talvez seja justamente aí que reside sua potência: em não se fechar em fórmulas, mas em se deixar atravessar pelo que é humano, sendo vivo e contraditório. Ela se mistura com o nosso jeito de ser, com nossas expressões, com a forma como usamos o humor, entre outras características tão nossas. Não é, ou tampouco deveria ser, uma teoria congelada. 

A psicanálise oferece algo quase raro em uma vida agitada: um lugar onde é possível parar, falar e se ouvir sem pressa. E quando alguém se escuta de verdade, algo maior também se transforma, ainda que vagarosa e silenciosamente, mas profundamente. Vale lembrar que a psicanálise clássica, aquela que nasceu com Freud, tem sua base na interpretação dos sonhos, na análise da transferência e na investigação do inconsciente estruturada por regras e técnicas. A minha abordagem, embora siga esses fundamentos, se distancia do modelo rígido: Minha clínica não é neutra, eurocentrada e muito menos silenciosa. Aqui tem espaço para as questões raciais, para o samba, para o terreiro, para as artes. Para o riso, para a troca e principalmente para o acolhimento a quem você é e pode vir a ser.  

Referências 

BORGES, Ana Lúcia Guaragna; WEINMANN, Amadeu de Oliveira. Escuta urbana: um convite à psicanálise para habitar a cidade. Revista Subjetividades, Fortaleza, v. 25, n. 1, p. e13765, 2025. Disponível em: https://ojs.unifor.br/rmes/article/view/13765 Acesso em: 19 out. 2025. 

PENNA, Carla. Afinando a escuta sobre o “Inconsciente Social dos Brasileiros”. Cadernos de Psicanálise (CPRJ), Rio de Janeiro, v. 44, n. 47, p. 73-94, 2022. Disponível em: https://www.cprj.com.br/ojs_cprj/index.php/cprj/article/view/411 Acesso em: 19 out. 2025. 

SOUZA, Maria Aparecida de; LIMA, José Carlos de. Psicanálise e território: a escuta nas quebradas. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 32, n. 1, p. 1-12, 2020. Disponível em: https://doaj.org/article/1e3c1de904224efd91706b4b259b6a97 Acesso em: 19 out. 2025.

Sobre a autora

Luciana Bastos, CRP 05/60595 é psicóloga clínica, pós-graduada em Psicanálise Clínica, com estudos em racialidade, gênero e sexualidade. Integrante do coletivo Pra Preto Psi desde a sua fundação, em 2021, desenvolve uma prática comprometida com o acolhimento, a escuta das singularidades e a compreensão dos impactos das questões raciais na subjetividade.

Luciana C. Bastos
Profissional Pra Preto Psi Luciana Bastos