O contexto sócio-histórico brasileiro tem como principal característica a interação entre grupos sociais negro, indígena e branco. Embora o mito da democracia racial tenha nos vendido a equívoca ideia de convivência harmoniosa e pacífica, sabemos que a história brasileira foi marcada pela dominação, exploração e hierarquização do grupo branco em detrimento dos demais. Esse cenário se repete nas formações familiares, com relações que refletem as desigualdades históricas, estéticas e sócioeconômicas entre as raças.
O que temos visto ao longo desses 5 anos de trabalho clínico e grupal, é que as diferenças são sistematicamente silenciadas para manter a ordem familiar. O silêncio racial nas famílias cria um imperativo de igualdade que não se sustenta no cotidiano, marcado por racismo recreativo e processos de comparação e exclusão intrafamiliar. Estas violências, por muito tempo, seguem sem nomeação devido ao afeto familiar envolvido. Aqui, amor e colonização caminharam lado a lado, ora como subversão, ora como extermínio. Assim, reconhecemos a difícil tarefa iniciada com o processo de Tornar-se negro (Souza, 1983), que é a de compreender as violências raciais vividas em tom de piada, conselho e até cuidado adotadas pelas nossas mães, pais ou familiares.
A interação familiar interracial quase nunca significa um diálogo potencial entre cultura, estética, saberes e tradições dessemelhantes. Pelo contrário, tem feito parte do modelo familiar cristão brasileiro a imposição de uma única cultura, pois diferença significa também hierarquia. Assim, o monoteísmo, a monocultura e a monogamia são formas de aniquilação das diferenças aliada à imposição da branquitude. Em boas parte das famílias, o membro familiar negro ou indígena, está frequentemente isolado, separado e/ou alienado da sua cultura e comunidade. Como no retrato da Redenção de Cam, não somente a cor, mas também as características históricas e culturais vão sendo apagadas do futuro.
Antes da decisão de apagar-se do futuro, o negro e indígena brasileiro vive a violência racial de forma contínua e cruel, descrita por Neusa Santos Souza, que tende a banir da sua vida psíquica todo pensamento de prazer e todo prazer de pensar. Muitas vezes é este membro familiar que encarna papéis degenerados, violentos ou profundamente emocionais. O esforço de apagar a negritude (e consequentemente os significados negativos associados a ela) é encarado, então, como solução para esconder as complexidades de uma trama familiar escrita na colonização.
Precisamos, como aponta Geni Nuñez, superar a monocultura dos afetos e dos modos de vida, abrindo espaço para a multiculturalidade e multirracialidade. O silêncio racial nas famílias somente poderá ser revisto através da compreensão da história brasileira e dos impactos do racismo nas nossas formas de viver e amar. Resgatar as raízes, histórias e tradições familiares negras e indígenas pode ser o primeiro passo para subverter uma lógica de dominação ainda muito presente nos lares brasileiros.
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Sobre as autoras
Bárbara Borges (29) e Francinai Gomes (26) são pesquisadoras, escritoras e coordenadoras do projeto Pra Preto Psi. Ambas são naturais do interior baiano, tendo se conhecido durante a graduação em psicologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atuam no campo da psicologia social e promoção de saúde mental da população negra, se dedicando a temática da clínica racializada. Publicaram juntas o livro Saber de mim: autoconhecimento em escrevivências negras (2023) e compartilham no instagram Pra Preto Ler escrevivências que unem psicologia, saúde mental e comunidade negra brasileira.