“Condenar a raiva, praticar o silêncio e esconder a culpa”: não é transtorno, você está sofrendo de cristianismo.

Pra Preto Psi - Não é transtorno, você está sofrendo de cristianismo
Pra Preto Psi - Não é transtorno, você está sofrendo de cristianismo

Esses dias, numa sessão de terapia, minha psicóloga pediu que eu desenhasse tudo que eu gostaria de queimar na minha família. Eu fiz o círculo e nele coloquei alguns elementos: Primeiro alguns grandes olhos, que representavam o quanto meus familiares estão a todo tempo compartilhando suas impressões e percepções com um crivo acirrado. Depois coloquei algumas bocas lacradas, que representavam os silêncios que são produzidos por um amor condicional, que muitas vezes depende do quanto as mulheres negras da minha família são capazes de tolerar ausências, sobrecargas e incômodos. Também desenhei alguns quadrados, que simbolizavam a rigidez na forma como meus familiares falam, vivem e amam. No fim, bem ao centro do desenho, coloquei uma cruz, representando a exigência de “deixar o passado para trás”, tão cobrado na minha casa.

Percebi que todos esses pontos, que diziam sobre a minha dinâmica familiar particular, também se relacionavam com um modelo de parentalidade instituído pelo cristianismo no Brasil. Por isso Neusa Santos Souza, na entrevista ao Programa Espelho, afirma a complexidade de lidar com os impactos sócio-emocionais do negro no espaço da clínica psicanalítica. Em suas palavras, a origem da angústia é social, mas a estrutura é particular, singular. Essa origem social está fortemente marcada pela moral cristã que estrutura não apenas a linguagem dos afetos, mas também as fronteiras do aceitável dentro das relações familiares. A moralidade cristã, ao condicionar o amor à submissão, cria vínculos frágeis e muitas vezes violentos, baseados mais em julgamento do que em acolhimento. A expectativa de obediência, de perdão incondicional e de recato emocional desumaniza as relações, especialmente quando marcadas pelos estereótipos de força e resiliência.

Como afirma Geni Nunes em Descolonizando Afetos, o amor no marco colonial-cristão não é um sentimento livre, mas uma tecnologia de controle. Ele exige um tipo de conduta moldada pela submissão, culpa e pelo medo de uma solidão que, muitas vezes, já está sendo vivida. Essa lógica perversa, na qual é a mulher negra e indígena quem costura, no silêncio e no suor, a permanência das estruturas familiares, vive-se uma dupla exploração mascarada de vocação. Quando se espera que essas mulheres “dêem conta de tudo”, impede o reconhecimento da exaustão como um sinal legítimo de cansaço e não de fraqueza.

Neste cenário, a exigência de perdão, assim como o controle emocional, são as saídas propostas para a culpa cristã. Ela surge da interpretação do conflito como falha moral, e não um sinal de descompasso entre necessidades e limites. Neste sentido, a expressão do racismo heteropatriarcal aparece na interpretação de papéis definidos: aos homens o excesso de controle emocional, evitando o reconhecimento humano das suas falhas; às mulheres, o perdão compulsório, erguendo uma muralha emocional interna em nome da continuidade. 

Os impactos socioemocionais da moral cristã, especialmente quando introjetados desde a infância, muitas vezes se manifestam através de sintomas hoje classificados como transtornos mentais, como depressão e ansiedade. Mas por trás desses diagnósticos, frequentemente se escondem histórias emocionais marcadas por culpa, vergonha e medo — sentimentos cuidadosamente cultivados pela pedagogia cristã. “Condenar a raiva, praticar o silêncio e esconder a culpa” é uma receita que molda subjetividades, tornando-as responsivas a um mundo onde o sofrimento deve ser silencioso e a dor, espiritualizada. Por isso, a saúde mental nesse contexto não pode ser pensada separada da desobediência a modos de vida que transformam sofrimento em falha individual, apagando as violências que o originam.

Abrir espaço para a dimensão social no setting terapêutico é necessariamente um movimento de reconhecimento das desigualdades históricas que assolam o Brasil, mas também de acolher os impactos de uma estrutura profundamente repulsiva à formas comunitárias de parentalidade. A palavra “parente” vem de modos de vida indígenas que se reconhecem em suas diferenças, e é através dessa diferença que o fortalecimento do vínculo acontece. Descolonizar os afetos é, então, reconfigurar o amor como espaço de liberdade e não de medo.

Referências:

Nuñes, Geni. Descolonizando afetos: experimentações sobre outras formas de amar. São Paulo: Paidós/Planeta, 2023.

Episódio do Programa Espelho com Neusa Santos Souza, Canal Brasil, 2008, disponível no Youtube, https://youtu.be/eugWGvhG48o?si=nTfL9zNBkJdy_Erz

Sobre as autoras:

Bárbara Borges (29) e Francinai Gomes (26) são pesquisadoras, escritoras e coordenadoras do projeto Pra Preto Psi. Atuam no campo da psicologia social e promoção de saúde mental da população negra, se dedicando a temática da clínica racializada. Publicaram juntas o livro Saber de mim: autoconhecimento em escrevivências negras (2023) e compartilham no instagram Pra Preto Ler escrevivências que unem psicologia, saúde mental e comunidade negra brasileira.

Francinai Gomes e Bárbara Borges, escritoras do livro "Saber de mim" e fundadoras do Pra Preto Psi
Francinai Gomes e Bárbara Borges, escritoras do livro “Saber de mim” e fundadoras do Pra Preto Psi