O modo como compreendemos quem somos, o que chamamos de “eu”, não é neutro. Essa construção é atravessada por dimensões históricas, sociais e culturais. No contexto urbano, marcado por uma lógica moderna, capitalista e colonial, a subjetividade foi sendo reduzida a uma experiência individualizada, isolada e desvinculada das estruturas que a constituem.
A crença de que o autoconhecimento é um processo interno, resolvido apenas dentro de si, é uma das muitas armadilhas que herdamos. Parte do projeto colonial, articulado com o cristianismo, essa lógica impõe a culpa como mecanismo de regulação e a introspecção como penitência. O sofrimento, nesse modelo, deve ser redimido no campo individual, como se vínculos fossem ameaças à autonomia. E o que se define como autonomia é, na verdade, uma desconexão forçada do que nos sustenta.
Pessoas negras, periféricas, indígenas e dissidentes têm adoecido não porque lhes falta autoestima, mas porque foram convencidas de que precisam se bastar. Foram ensinadas a acreditar que seus sentimentos são responsabilidade exclusiva de suas escolhas, de sua força, de sua capacidade de “dar conta”. Essa é a face mais perversa da subjetividade descontextualizada: transformar sofrimento coletivo em falha individual.
Mas o que chamamos de identidade não se sustenta no vazio. Ela é formada por redes: nossos afetos, ancestralidade, religião, território, trabalho, comunidade. Como diz Nego Bispo, a confluência é um movimento que faz render. Relações são campos de força, e reconhecer isso exige mais do que mapear com quem nos relacionamos. É preciso compreender o modo como essas relações operam. Porque nem toda relação nutre. Algumas sobrecarregam, silenciam e fragmentam.
A clínica, por sua própria estrutura, já opera a partir de uma lógica individualizante. Se não for intencionalmente comprometida com a justiça social, ela corre o risco de transformar experiências coletivas em sintomas pessoais. Corre o risco de punir o paciente por não performar um ideal de estabilidade emocional que ignora as violências que o atravessam.
Como aponta Carla Akotirene, a interseccionalidade não é uma ferramenta de análise identitária. É um princípio ético que orienta o cuidado. Uma escuta que reconhece que não existe um “eu” fora das dinâmicas sociais. Uma psicologia negra e crítica não está a serviço da normatização, mas da dignidade. Não busca ajustar o sujeito ao mundo, mas abrir caminhos para que ele possa habitá-lo de forma plena.
Sobre as autoras:
Francinai Gomes (26) e Bárbara Borges (29) são pesquisadoras, escritoras e coordenadoras do projeto Pra Preto Psi. Atuam no campo da psicologia social e promoção de saúde mental da população negra, se dedicando a temática da clínica racializada. Publicaram juntas o livro Saber de mim: autoconhecimento em escrevivências negras (2023) e compartilham no instagram Pra Preto Ler escrevivências que unem psicologia, saúde mental e comunidade negra brasileira.
