Era fim de tarde quando decidiu caminhar até o pequeno parque do bairro, um lugar que, apesar de abandonado pelo poder público, guardava uma beleza simples e reconfortante. As árvores, altas e antigas, pareciam sussurrar histórias de outras épocas, enquanto o céu carregado anunciava a promessa de chuva. A brisa trazia um cheiro de terra molhada, um aroma que sempre lhe evocava memórias de infância, de dias em que corria com pés descalços pela rua de terra batida, sem preocupações além de chegar a tempo para o almoço. O horizonte parecia suspenso, como quem espera por algo que nunca chega, e aquela sensação de expectativa parecia ecoar dentro de si.
Se encostou em um banco velho, gasto pelo tempo e pelas intempéries, sentiu o peso da própria respiração. Não era apenas o cansaço do corpo, mas o de existir em um mundo que nunca parecia oferecer descanso. As pernas doíam, sim, mas era a mente que parecia carregar o fardo mais pesado. Olhou para as mãos, que repousavam sobre os joelhos, e pensou em quantas histórias elas poderiam contar — histórias de trabalho, de luta, de resistência. Histórias que, muitas vezes, pareciam invisíveis para os outros, mas que ecoavam dentro de si como um sussurro constante.
Enquanto observava as crianças brincando entre as árvores, lembrou-se de algo que havia lido certa vez: somos parte do mesmo fluxo que as águas do rio e o vento entre as folhas. Essa ideia, que parecia tão simples, sempre a fazia pensar no quanto a própria vida, por mais singular que fosse, estava conectada a forças maiores. As histórias dos ancestrais, as lutas daqueles que vieram antes, o riso dos amigos na calçada — tudo parecia se entrelaçar em uma rede invisível, mas poderosa. Krenak dizia que “precisamos criar parentesco com a vida”, e ali, naquele momento, se perguntava: que parentesco poderia criar com o corpo que habitava, marcado por cicatrizes invisíveis, e com o mundo que tanto desafiava, mas também moldava? Talvez o primeiro passo fosse reconhecer que a própria existência era parte de uma rede maior, onde cada dor e cada riso ecoavam além de si.
Na psicoterapia, encontrou o que sempre almejava: um lugar onde podia simplesmente ser. Não havia pressa, nem julgamento, apenas a possibilidade de explorar suas experiências com um olhar curioso e acolhedor. Quando falava sobre o racismo enfrentado no trabalho — como naquela reunião em que sua ideia foi atribuída a um colega — ou o incômodo em ter sua fala constantemente interrompida, sentia que suas vivências eram validadas. Era como se, ao compartilhar suas dores, estivesse também tecendo uma rede de apoio, invisível, mas palpável. A fala ainda era hesitante, mas cada palavra dita era um fio que conectava a outras histórias, outras lutas.
O ritmo da própria vida, acelerado e fragmentado, era algo que vinha questionando cada vez mais. Por que a ansiedade parecia sempre à espreita? Por que o tempo nunca era suficiente? Krenak falava sobre a importância de desacelerar, de resistir à lógica de urgência que empurrava para longe de si mesmo. Talvez a ansiedade não fosse apenas individual, mas de um sistema que insistia em desumanizar corpos como aquele, corpos que carregavam o peso de histórias não contadas e de futuros adiados. A terapia ajudava a ver que, ao cuidar da mente, estava também se desenvolvendo, encontrando formas de existir que fossem mais autênticas e menos moldadas pelas pressões externas.
Nas ruas, porém, a realidade parecia inescapável. Notava os olhares apressados, os rostos tensos, as buzinas incessantes. Pensava no que Abdias do Nascimento chamava de “escravização mental”, esse estado em que muitos vivem, inconscientes das correntes que os aprisionam. Era como se as pessoas estivessem tão ocupadas sobrevivendo que não tinham tempo para questionar o sistema que as oprimia. Mas então, via os jovens do bairro com seus cabelos coloridos e fones de ouvido, desafiando normas com pequenas atitudes diárias. Era ali, na simplicidade do cotidiano, que enxergava um futuro possível. Eram gestos pequenos, mas poderosos, que mostravam que a resistência podia ser feita de coisas simples, como escolher ser quem se é, apesar de tudo.
Sabia que cuidar da mente não era apenas sobre olhar para dentro, mas também sobre entender como o mundo moldava o que sentia. Não era fraqueza sentir esgotamento; era o reflexo de viver em um mundo que nunca foi feito para acolher pessoas como aquela. Ao mesmo tempo, havia uma força em reconhecer isso — uma força que fazia querer continuar, mesmo nos dias mais difíceis. Era como se, ao aceitar suas próprias limitações, estivesse também se libertando delas. A terapia, as caminhadas no parque, as conversas com pessoas amigas — tudo isso eram pequenos atos de cuidado, gestos de amor-próprio que, juntos, formavam uma rede de resistência.
Quando voltou para casa naquela noite, o cheiro da chuva finalmente havia tomado o ar. Enquanto fechava a janela, pensou que talvez nunca houvesse respostas definitivas. Mas havia perguntas. Perguntas que conectavam a outros corpos, outras histórias. Naquele momento, decidiu que começaria um diário, não apenas para si, mas para compartilhar com outras pessoas que, como si, buscavam respirar em um mundo que tantas vezes parecia sufocar. Talvez o caminho não fosse um destino, mas uma jornada compartilhada, como aquelas águas do rio que nunca param de fluir. E, enquanto caminhava, percebia que cada passo era um ato de resistência, um gesto de parentesco com a vida e com todos que, como si, buscavam respirar em um mundo que tantas vezes parecia sufocar.
Sobre o autor

Rodrigo Felix Marinho é psicólogo vinculado ao Pra Preto Psi desde 2022. Conheça mais em https://prapretopsi.com.br/profissionais/rodrigo-marinho/